ANA CRISTINA VIEIRA
Os apaixonados por cinema, especialmente pelo cinema brasileiro, vivem o clima de ansiedade nestes dias diante da real possibilidade de levarmos a estatueta do Oscar pelo filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e pela performance impecável da Fernanda Torres. Mas afinal, o que o cinema nos provoca? Quero aqui chamar a atenção para a sétima arte e a infância. Certa vez , ao ler uma pesquisa da Doutora em Ciências Psicopedagógicas pela UCA (Argentina), Adriana Mabel Fresquet, uma informação me impactou: Ser privado de assistir a filmes de qualidade durante a infância significa perder uma possibilidade que não terá como acontecer com a mesma intensidade mais tarde. É como se as impressões produzidas nos primeiros anos pelo cinema deixassem uma marca inesquecível na memória afetiva pessoal.
Nesta esteira, pergunto aos pais: nossas crianças estão experienciando o cinema ou apenas inseridos na velocidade da tela de celular na palma da mão em vídeos instantâneos?
Nesses mais de cem anos de vida, o cinema usa da imagem para falar com seu espectador, propagar ideias, entreter, despertar inquietações, sentimentos, memórias, como percebeu Walter Benjamin ao citar que o cinema é utilizado para mudar a representação do homem sobre si e sobre seu entorno social e histórico. A sétima arte nos propicia uma janela para ver o mundo, nos assomar a ele, distante no tempo e no espaço, vendo o que não conseguimos ver de modo direto, “ao mesmo tempo, essa janela vira espelho e nos permite fazer longas viagens para o interior, tão ou mais distantes de nosso conhecimento imediato e possível”, pontuou a pesquisadora Adriana Fresquet.
Podemos observar o consumo de cinema relacionado à cidadania, reconhecendo-o em seu conceito amplo, tendo o cidadão direito de consumir bens materiais e simbólicos, permitindo-se uma fruição cultural. O consumo se reveste de prática sociocultural, que possibilita “o sentido de pertencimento”, revelando e construindo sua identidade. Por outro lado, poderíamos estar vivendo um esvaziamento de experiências pela celeridade dos tempos atuais? Excesso de informação, excesso de opinião, excesso de trabalho e falta de tempo.
A velocidade na conjunção dessas características sinaliza o impedimento da memória, já que cada acontecimento é substituído por outro, que estimula o sujeito imediatamente, porém é trocado sem deixar vestígio, como bem apontou o filósofo Jorge Larrosa, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória são também inimigas mortais da experiência.
Ao assistir a um filme, a criança poderia incorporar, em seu repertório, algo novo como sua própria experiência, ou seja, a imaginação concebida pelos registros da memória institui novos vínculos com a realidade, novas experiências que poderiam enriquecer a imaginação.
Guardo, na memória, a primeira película que acompanhei numa sala de cinema, o Cine Bandeirantes, no centro de Cuiabá, levada por minha mãe, professora e assistente social. O desenho era Bernardo e Bianca e, na ocasião, eu tinha 5 anos. A minha infância foi vivenciada sob ficção e realidade, durante a qual o quintal da casa dos meus avós me possibilitava perceber o entorno com sensibilidade. Parafraseando o poeta cuiabano Manoel de Barros: “Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo”.
Recentemente, acompanhei meu filho caçula ao cinema para assistir "Chico Bento e a goiabeira maraviosa", adaptação das histórias de gibi de Maurício de Souza. Não sei dizer quem mais se divertiu: ele ou eu. Lá estavam minhas memórias de leitora de gibi, da menina que vivia empoleirada nas árvores dialogando com meu guri que me dizia que o ator que interpreta o Chico Bento, Isaac Amendoim, 10 anos, faz sucesso na internet com seus vídeos mostrando sua vida no interior de Minas Gerais. Uma pista a ser considerada, o universo infantil da internet impactando no cinema.
Alternativa lúdica e amplamente estudada no amparo de práticas educativas, culturais e sociais, o cinema constitui ferramenta capaz de contribuir com a aprendizagem. Nos sacode, nos faz pensar, ativando nosso acervo de memórias e invenções, reconhecendo que a criança e o adolescente têm um repertório de experiência e saber entranhado em suas raízes.
Por certo, essa não é a única via de aprendizado e cidadania, mas um caminho que une tecnologia, educação e fruição cultural, respeitando memórias e trazendo-as para compor e ressignificar sentidos.
O cineasta Alain Bergala nos propõe a missão de fazer pontes, articular trechos, despertando a percepção das sutilezas. Se quisermos iniciar as crianças no cinema é importante partir, primeiramente, da experiência direta da travessia do filme: ela entra no filme, atravessa o filme, e quando ela sai desse filme, traz uma inteligência do filme, a maneira pela qual ela o compreendeu e se emocionou. Importante destacar que para além das salas de cinema dos shoppings, temos filmes exibidos gratuitamente no Sesc Arsenal.
Vamos desacelerar o tempo e criar memórias com nossos filhos?
Ana Cristina Vieira é jornalista, advogada, palestrante, mentora, especialista em mídias digitais, mestre em Educação pela UFMT, pesquisadora da infância, associada BPW Várzea Grande. @acrisv