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Cuiabá, 15 de Janeiro de 2025
15 de Janeiro de 2025

27 de Agosto de 2012, 08h:44 - A | A

OPINIÃO / SILIO BOCCANERA

Arte e poder na Rússia

SILIO BOCCANERA



A condenação por um tribunal em Moscou do grupo feminista/anarquista/punk russo Pussy Riot a dois anos de reclusão por ‘vadiagem motivada por ódio religioso‘ chamou a atenção do mundo para um sistema de justiça ainda subserviente aos interesses políticos do governo, herança do período soviético, como também para o autoritarismo crescente naquele país sob o comando de Vladimir Putin.

Três mulheres desse grupo de ação política que atua via performance artística foram presas em fevereiro após realizar uma de suas manifestações - música, dança e protestos – no interior da Catedral de Cristo Salvador, principal centro religioso da igreja ortodoxa russa (cristã) em Moscou. 

Alguns fiéis presentes, líderes religiosos alertados depois e muitos russos que só souberam do evento mais tarde declararam-se ofendidos pelo gesto das mulheres, conhecidas pelo uso de máscaras ou balaclavas em suas performances. Quanto ao governo, aproveitou a oportunidade para agir contra um grupo que já vinha incomodando o Kremlin com seus protestos anti-Putin, acusando-o de abuso de poder desde que retomou a presidência para um terceiro mandato. 

Vários políticos, grupos e celebridades fora da Rússia interpretaram o episódio como exemplo de autoritarismo do governo e repressão à liberdade de opinião, além de se revelar como mais um caso de manipulação do sistema judiciário contra adversários políticos, mesmo num evento-relâmpago pouco ameaçador à ordem pública e religiosa. 

Na Rússia, entretanto, pesquisas de opinião indicaram que a maioria da população apoiou as autoridades na repressão ao movimento Pussy Riot, reflexo do conservadorismo político e religioso da população russa, bem como sua herança cultural de respeito e até reverência a um pulso forte no comando do país - dos czares e Stalin e Brejnev.

A reação da opinião pública interna ilustra também porque, apesar das críticas crescentes a Putin no exterior, ele continua popular na Rússia, embora menos do que antes. Na cabeça do cidadão comum, foi Putin quem os resgatou do caos e do descontrole do período imediato após a implosão do comunismo soviético, quando a frágil liderança de um Boris Yeltsin doente e alcoólatra deixou a economia em frangalhos e o controle do país em mãos de alguns bilionários amigos do poder.

A imagem de Putin, para a maioria dos russos, é de um líder com mão firme, que passou a controlar os oligarcas (prendeu alguns, exilou outros, beneficiou os seus), que chefiou uma economia em recuperação (beneficiado em grande parte pelo mercado internacional de petróleo e gás, em alta sem interferência dele), trouxe estabilidade e permitiu a ascensão de uma classe média. Além disso, sua imagem pessoal de esportista em boa forma física (as fotos de peito nu e lutando judô não são acidentais) e refratário à bebida alcoólica reforçam a percepção de que o comando do país está em mãos firmes.

Dito isso, o governo fez uma lambança com o caso Pussy Riot e entregou de bandeja a seus adversários - dentro e fora da Rússia – um presente de relações públicas para poder denunciar e atacar intolerância de divergência, desrespeito à liberdade de expressão e abusos de autoridade. Poderiam ter punido o comportamento desrespeitoso das manifestantes na igreja de forma menos grosseira, em vez de optar por ‘dar uma lição‘.

Pussy Riot ganhou projeção a partir do final do ano passado, quando explodiram os primeiros protestos de rua contra o retorno de Putin à presidência. As manifestações começaram quando ele anunciou que pretendia voltar ao cargo, trocando de posição com seu leal servidor Dimitri Medvedev, que encerrava um período de quatro anos na presidência, deixada temporariamente por Putin porque já tinha servido no posto durante dois mandatos. Optaram por manter a fachada de legalidade constitucional. Embora Putin tivesse ficado ‘de fora‘ durante a presidência Medvedev, serviu como primeiroministro e, conforme consenso entre os observadores do poder na Rússia, continuou controlando as rédeas do poder real nos bastidores, em conluio com seu fiel servidor e discípulo no trono.

Mesmo os cínicos esperavam que Putin se conformasse em manter essa encenação durante mais um mandato de Medvedev na presidência, permanecendo como primeiro-ministro, e só se apresentasse de novo ao cargo de mais prestígio alguns anos à frente. Pelo jeito, ele não aguentou ter apenas o poder na sombra e anunciou seus planos de voltar à presidência - invertendo os papéis com Medvedev. 

Como foi dito acima, a maioria dos russos pouco se importou com o jogo de cadeiras, porque pouco afeta seu dia a dia, e Putin lhes garantia estabilidade. Mas uma parcela da população sentiu-se ludibriada e saiu às ruas de Moscou e São Petesburgo em protestos, que foram reprimidos com vigor pelas forças de segurança.

Aí despontou a ação lúdica-performática anarquista das Pussy Riot, com suas máscaras teatrais que não visam escapar de identificação pela polícia - as participantes são conhecidas – e sim dar ênfase à ação coletiva, ao gesto do grupo e não do indivíduo. Tanto que Pussy Riot como movimento continua a existir apesar da prisão das três participantes condenadas a dois de reclusão pela ação na igreja.

A escolha da catedral ortodoxa para palco de um protesto de 40 segundos se explica pela postura conservadora dessa igreja cristã tão reprimida durante o regime soviético, que hoje se contenta com a tolerância do regime à sua existência, contanto que se comporte às exigências do Kremlin. A manifestação de fevereiro foi na igreja reconstruída no local da original, destruída por Stalin em nome do ateísmo marxista-leninista.

A manifestação das três mulheres da Pussy Riot ocorreu em horário matinal de pouco público da igreja, a não ser pela presença de umas senhoras devotas, que depois se disseram escandalizadas e ofendidas pela ação naquele local. Foram logo presas. O patriarca ortodoxo ligado ao Kremlin fez declarações indignadas e exigiu punições severas.

O governo, por sua vez, viu no episódio uma oportunidade de acabar com as críticas incômodas de algumas mulheres ousadas e pouco convencionais. O caminho escolhido foi o mesmo que as autoridades vêm adotando com frequência contra seus adversários políticos: processo num tribunal com garantias de que o veredito saia conforme deseja o Kremlin.

Assim foi feito, por exemplo, contra um dos bilionários herdados do período Yeltsin, Michail Kordokovski, dono de uma poderosa empresa de petróleo, mas que irritou Putin assim que demonstrou ambições políticas de oposição. A máquina de fiscalização do estado foi então mobilizada em massa contra ele, com dezenas de agentes em ação, e logo surgiram acusações de fraude e corrupção (possivelmente até legítimas, considerando o obscuro processo de privatização no período pós-soviético, mas só aplicadas seletivamente contra adversários). Kordokovski foi condenado e está preso há mais de dez anos.

O mesmo mecanismo começa a ser aplicado contra um novo adversário do regime, Alexi Nalvany, outro bilionário que ousou manifestar oposição ao Kremlin e ambições políticas próprias. Já foi transformado em alvo de um pelotão de fiscais do governo em exame minucioso de suas contas empresariais e pessoais, em busca de alguma infração capaz de condenálo e tirá-lo do caminho.

A diferença com as mulheres da Pussy Riot é que a prisão e o julgamento das três militantes ganharam repercussão mundial, talvez até porque se apresentem apenas como artistas, sem envolvimento com a elite bilionária e sem planos políticos formais. Seu teatro político sensibilizou artistas, políticos, mídia e opinião pública em vários países, sobretudo diante da imagem das mulheres enjauladas na sala de um tribunal pouco independente.

A reação internacional pegou o governo de surpresa. Músicos estrangeiros manifestaram solidariedade, de Paul McCartney a Sting, com repercussão ainda maior quando Madonna, que por coincidência fazia uma show em Moscou nos dias finais do julgamento, apresentou-se no palco de balaclava, pintou na pele o nome Pussy Riot e defendeu o grupo ao vivo no palco, em território russo. Grupos feministas, mídia, políticos e artistas de várias categorias declararam apoio às mulheres condenadas no tribunal.

Não é difícil imaginar o Kremlin em autopenitência agora, concluindo que avaliou mal a repercussão política de uma ação repressora como tantas outras que costuma adotar contra seus adversários, habitualmente sem maiores consequências. Só que, desta vez, não contou com a força anárquica/rebelde/teatral/provocadora das mulheres da Pussy Riot e seus aliados instantâneos pelo mundo.

Surgem especulações dentro e fora da Rússia sobre o que poderia ocorrer agora, desde uma redução da pena a um perdão presidencial, mas o dano já está feito. A arte confrontou o poder na Rússia. E o poder saiu chamuscado.

 

*Silio Boccanera é jornalista.


A redação do RepórterMT não se responsabiliza pelos artigos e conceitos assinados, aos quais representam a opinião pessoal do autor.

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