MARINALDO CUSTÓDIO
Num texto verdadeiramente delicioso do livro Um Bom Par de Sapatos e Um Caderno de Anotações, de Anton Tchekhov, há reflexões de nos fazer cair o queixo acerca do eterno paralelo entre viajar e escrever, escrever e viajar.
Como quem nada quer, o narrador logo nos informa que o seu principal intuito, ao viajar, é não ter nenhum intuito pragmático ou interesseiro: “Viajo pra mudar de ares, pra vencer a preguiça, sem a expectativa de ter de escrever”.
Um narrador-escritor que vai pelas estradas sem o compromisso autoexigente de ter de escrever a qualquer custo, mas que depois escreve – inclusive pra nos informar as razões pelas quais tantas vezes ficou sem vontade nenhuma do botar garranchos no papel – o equivalente, hoje, a alguém olhar para o computador sem vontade nenhuma de ligá-lo, vontade nenhuma de ter qualquer ligação, naquela hora, com qualquer escrito ou com qualquer gente conversadeira.
Um escritor, um compositor, um repórter ou cronista de jornal – a despeito de tablets, smartphones e assemelhados com seus whatsapps ou facebooks – sempre vai precisar mesmo de um bom par de sapatos, uma mochila e... um caderno de anotações.
A propósito, li, há algumas décadas, entrevista com o cantor e compositor Taiguara na qual ele falava que, mesmo na praia, não se separava inteiramente de sua caderneta. Se num eventual mergulho surgia uma ideia, uma nota, um provável título ou andamento de canção, ele logo corria à barraca onde deixara seus pertences e registrava aquele fragmento de inspiração para aproveitamento futuro.
Artistas da palavra às vezes acabam por fazer um aproveitamento radical da arte de sair por aí, pelo mundo, fazendo anotações. No final do século XX, já próximo da morte, o argentino Adolfo Bioy Casares publicou um livro cuja matéria inteira vinha de suas cadernetas de campo: frases, provérbios, ditos populares, inscrições, trechos de canções, textos de propagandas, placas de comércio, para-choques de caminhão...
O livro De Jardines Ajenos (De Jardins Alheios), até hoje não publicado no Brasil, já começou a lhe dar as maiores alegrias ainda quando estava no prelo. Um dia – conta Bioy Casares – ele foi visitar seu editor e quando entrou no prédio percebeu que o pessoal da sala de impressão ria muito, ria tanto que ele teve a curiosidade de ir até lá pra ver do que, afinal, riam tanto.
E, para sua feliz surpresa, viu que os gráficos riam das pilhérias, curiosidades, tolices e sabedorias populares impressas naquele seu volume.
Também eu venho juntando coisas feito Adolfo Bioy Casares, para quem sabe um dia juntar parte desse material num livro. Só que, ao contrário do autor argentino que fez um livro com 320 páginas, penso em fazer um bem menor, com no máximo 120 páginas.
Bom pra carregar na mochila, pra ler no ponto de ônibus ou no ônibus, no trem, no metrô, no avião, no nosso VLT que dizem que vem...
Para um livro desses quero que valha, sobretudo, a reflexão de Tchekhov acerca de sua jornada: “Que seja a minha viagem uma asneira, uma cisma, um capricho, mas pense e diga: o que perderei se partir? (...) Mesmo que a viagem não me dê absolutamente nada, será que, apesar de tudo, não haverá uns dois ou três dias dos quais eu vá me lembrar o resto da vida com entusiasmo ou com amargura?”.
Nem eu, escrevendo, tenho muito que perder: meu tempo sempre me sobra pra essas coisas que amo, de todo modo, já estou super-habituado a viver com pouco e, se o sucesso não vier, me consolo, altivo, na companhia de tantos e tantos que se arriscam mas nada petiscam nos banquetes literários do mundo.
MARINALDO CUSTÓDIO é escritor e mestre em Literatura Brasileira pela UFF (Universidade Federal Fluminense).