G1/SP
Um preso custa, em média, aos cofres dos estados o valor de R$ 1.800 por mês. É o que revela um estudo inédito obtido com exclusividade pelo g1 e pela GloboNews. A diferença no custo per capita, porém, chega a 340% na comparação entre as unidades da federação.
O documento foi elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
O valor de R$ 1.800 é uma média ponderada levando em conta a população carcerária de todos os estados. Há, no entanto, diferenças gritantes: enquanto em Pernambuco o custo é de R$ 955 por preso por mês, no Tocantins esse valor chega a R$ 4.200.
No caso do Tocantins, os valores informados são referentes a apenas dois estabelecimentos prisionais, ambos geridos com participação da iniciativa privada. “Esta informação, cabe destacar, contradiz a expectativa corrente de que uma redução nos gastos com o sistema prisional seria possível a partir da participação da iniciativa privada no setor”, dizem os autores.
Para chegar aos valores, foram feitas solicitações via Lei de Acesso à Informação às unidades da federação. E, apesar de desde 2012 uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) estabelecer parâmetros para a aferição do custo de cada preso, poucos estados seguem tais critérios.
O CNPCP lista como custos as despesas com pessoal (salários dos agentes e outros encargos), transporte, material de limpeza, água, luz, telefone, lixo, esgoto, itens de higiene, alimentação, atividades educacionais, recursos de saúde, entre outros.
“No levantamento realizado pela presente pesquisa, 11 unidades da federação mencionaram utilizar a referida resolução como referência para realizar seus cálculos. Contudo, apenas seis unidades federativas de fato forneceram os dados seguindo minimamente os parâmetros propostos pela resolução do CNPCP. Os dados reunidos no relatório, incluindo as muitas discrepâncias entre as metodologias e valores apresentados pelas unidades da federação, evidenciam uma vez mais a falta de parametrização e transparência quando se trata dos valores que compõem os custos da reclusão de indivíduos no sistema prisional brasileiro”, afirmam os autores do estudo.
Não foram obtidas informações dos estados do Acre, Roraima, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
“Com taxas crescentes de encarceramento, a política prisional brasileira inevitavelmente acarreta grandes custos para os cofres públicos. É urgente, portanto, saber com precisão como esses recursos estão sendo alocados, e o que esse conjunto de informações de fato revela sobre a gestão das políticas penitenciárias. E, para tanto, são essenciais dados qualificados e confiáveis.”
O último levantamento do Monitor da Violência mostra que o número de presos - contando os em regime aberto e em carceragens da Polícia Civil - passa de 750 mil no Brasil. Ou seja, trata-se de um gasto bilionário.
Os autores citam que é extremamente importante a contabilização dos gastos em todas as áreas do governo que apoiam o sistema prisional – não apenas das secretarias dentro do orçamento das correções. “Ainda que as pastas responsáveis pela política prisional estadual concentrem sob sua responsabilidade a maior parte dos gastos com a população privada de liberdade, gasto com saúde e educação dessa população, por exemplo, em alguns casos, advém das rubricas das respectivas secretarias. Ou seja, a supressão de despesas relacionadas ao preso ou a sua diluição em outras rubricas são exemplos de fatores que podem levar à subestimação dos custos.”
Necessidades básicas
Um dos pontos mais relevantes do relatório do CNJ é o que diz respeito à discriminação dos custos por tipo de gasto. Quando é levado em conta um dos principais itens, a alimentação, por exemplo, há uma grande diferença entre os valores informados pelos estados. Em Pernambuco o gasto diário com a alimentação de cada pessoa privada de liberdade é de menos de R$ 6 (ou R$ 176 por mês); já no Amazonas esse gasto é seis vezes maior: R$ 38 diários (ou R$ 1.145 mensais).
Os gastos com material de higiene, vestimenta, colchões e material de limpeza também variam muito. Em Alagoas e no Distrito Federal, por exemplo, o gasto mensal não ultrapassa os R$ 11 por preso. “As discrepâncias observadas suscitam indagar como os estados, com gastos tão reduzidos, são capazes de fornecer subsídios mínimos para as pessoas privadas de liberdade. A resposta provável é apenas uma: essas necessidades básicas não estão sendo devidamente atendidas”, pontuam os autores do estudo.
Os gastos com pessoal - um dos que mais impactam na composição final - também são díspares. No Distrito Federal, eles representam 60% do total. Já no Amapá, esse percentual chega a 83%.
Para o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, o estudo do CNJ representa um avanço pois, na prática, “os estados não sabem exatamente quanto custa o seu sistema prisional”. “A verdade é que ninguém controla nada, e o valor mais fácil de ser controlado é salário, é um valor com peso muito forte no orçamento público. A primeira grande questão é essa: ter métricas que permitam que a gente faça o cálculo”, diz.
Segundo ele, a Emenda Constitucional nº 104, de 2019, aumentou o custo da atividade desempenhada pelos agentes de segurança penitenciária em todo o país. “Todos os agentes prisionais passaram a ser policiais, com os direitos e as prerrogativas de serem policiais, aumentando o custo dessa atividade. O estudo sobre os custos do sistema prisional aponta que o foco é muito na vigilância e na repressão e muito menos na política prisional como um todo”, afirma.
Qualidade/efetividade da política prisional
O objetivo do estudo, aliás, não é apenas apontar qual estado gasta mais e qual menos, e sim tentar entender o impacto de cada gasto na execução da política prisional. E, neste ponto, também há dificuldade em estabelecer uma correlação direta entre mais gastos por preso com uma maior efetividade da política penitenciária.
“Uma análise de custos do sistema prisional pode ser inócua caso não se contemple também uma discussão a respeito da efetividade do serviço prestado. Realizar esse exercício, contudo, é desafiador. A noção de custo, sem dúvida, é de fácil compreensão e, via de regra, vem acompanhada de cifras que impressionam o público menos acostumado a lidar com temas orçamentários. Já discussões sobre efetividade das políticas públicas são mais matizadas e demandam maiores esforços para sua apreensão. Soma-se a isto o fato de existir pouco apelo para a população – que, em geral, não enxerga as pessoas privadas de liberdade como sujeitos de direitos –, e, portanto, importa-se pouco com a eficiência dos serviços a elas prestado”, afirmam os autores do estudo.
Por isso, eles defendem a criação de um índice que leve em conta nove pontos:
Assistência material (alimentação e kits de cuidado pessoal)
Saúde (infraestrutura e equipe de atenção básica)
Educação (infraestrutura e percentual de presos estudando)
Assistência jurídica (espaço exclusivo para atendimento jurídico e quantidade de defensores atuando)
Trabalho (vagas disponíveis em sala de produção, número de pessoas trabalhando e número de pessoas que receberam curso profissionalizante)
Segurança e acessibilidade (infraestrutura, número de mortes violentas e de fugas, rebeliões e motins)
Contato com mundo externo e convívio (local específico para visita social e íntima e visita do Conselho da Comunidade)
Servidores penais (existência de refeitório, vestiário e alojamento, presença e funcionamento de escola penitenciária, ao menos um agente para cada 5 presos e atividades técnicas e de segurança)
Ocupação (taxa de ocupação)
“O desenvolvimento de uma metodologia de quantificação dos custos dos estabelecimentos penais, sem dúvida, pode ser uma poderosa ferramenta para subsidiar a tomada de decisões. O desenvolvimento de uma política pública eficaz para o sistema prisional brasileiro depende de informações confiáveis”, dizem.
Na avaliação do defensor público e ex-diretor do Depen Renato De Vitto, o estudo representa um avanço, dado o esforço do CNJ em reunir dados relativos aos custos com a gestão de unidades prisionais de praticamente todo o país. “A iniciativa é ótima e vem suprir uma lacuna que é super grave, que é a contabilização das despesas do sistema prisional do país. Houve também uma tentativa de estabelecer uma metodologia para a aferição do custo, o que é, sem dúvida, meritório”, diz o especialista.
Para o ex-diretor do Depen, um aspecto evidente do levantamento é que o Estado tem investido mais naquilo que ele classifica como o “custeio mínimo” no sistema prisional.
“A maior parte das despesas é para pagar o carcereiro para bater cadeado e a quentinha do preso. Estamos falando do mínimo possível para a cadeia funcionar”, explica De Vitto
Problematização dos gastos
O relatório cita uma pesquisa do instituto Sou da Paz que diz que o custo mensal de um preso no sistema prisional paulista é 47 vezes maior que o custo da utilização de uma pena alternativa. E que mostra ainda que os valores destinados à administração penitenciária cresceram 27,5% na última década, enquanto projetos destinados à população jovem tiveram investimentos reduzidos: segundo os dados levantados, um mês de prisão provisória de todos os jovens do estado custa mais do que o governo estadual investiu em um ano no programa ‘Ação Jovem’.
“O conhecimento dos custos do governo é de suma importância para a adoção de mudanças nos procedimentos que regem as decisões sobre o uso dos recursos públicos, bem como sobre os métodos aplicados à gestão das políticas e dos programas governamentais. A contenção de gastos, sob a retórica de racionalização da alocação de recursos, é fulcro das decisões em políticas públicas. No contexto atual, no qual uma crise de saúde pública acarretada pela pandemia da Covid-19 vem produzindo déficits na arrecadação, essa preocupação se torna mais premente. Soma-se a isso o fato de que, em diversas áreas, não há informação precisa e de qualidade que guie a gestão dos recursos públicos alocados. Como resultado, cresce o interesse em estratégias orientadas a dados para maximizar os gastos governamentais”, afirmam os autores no relatório.
O documento do CNJ cita ainda outra pesquisa que lembra que não são contabilizados os prejuízos de rebeliões, motins, mortes e gastos com transporte de presos para audiências e eventos extraordinários relacionados com o sistema penitenciário no cálculo do custo de um preso. “Deveria se considerar, também, o custo do próprio aparato das forças de segurança pública, do sistema de justiça, além do impacto decorrente da renda não gerada pelos indivíduos economicamente ativos privados de liberdade e alijados da possibilidade de exercerem atividade produtiva”, diz um outro estudo citado.
O defensor público e ex-diretor do Depen concorda e diz que não se pode ignorar o chamado custo social do encarceramento, resultado de questões como a imobilização da força de trabalho de centenas de milhares de jovens, já que a maioria dos detentos do país são desse perfil.
“Há estudos nos Estados Unidos que apontam um custo, por exemplo, de US$ 1 milhão por cada preso em termos de imobilização da força de trabalho de jovens, que ficam ociosos no sistema prisional. E tem também os gastos com o funcionamento das agências de controle, que são as polícias, a investigativa [polícias civis e Federal], a ostensiva [polícias Militares], e todas as instituições do sistema de Justiça, como o Judiciário, Ministério Público e a Defensoria Pública. Se tudo isso estivesse contabilizado, o custo médio por preso calculado seria muito maior”, afirma De Vitto.
Segundo ele, a separação por tipo de despesa do total gasto, em cada estado, com a custódia dos presos demonstra que o poder público investe muito pouco em programas de prevenção, nas chamadas ações de atenção ao egresso, visando à sua educação ou o incentivo à obtenção de um emprego. “Fica claro que não se encara o preso como uma pessoa vulnerável do ponto de vista social, que não teve acesso à educação e a um trabalho digno”, diz o ex-diretor do Depen.
“Esse é um dos motivos para o quadro atual do sistema prisional brasileiro, onde o preso é estigmatizado, não consegue emprego, a não ser apenas o trabalho na construção civil ou em alguma outra ocupação informal. Nem em trabalhos com transporte por aplicativos ele consegue, pois há a exigência de comprovação de não ter antecedente criminal. Qual é a consequência? Quando termina a pena, o sujeito sai e volta.”
Renato Sérgio de Lima concorda: “No Brasil, a gente tem de entender que, após o cumprimento de pena, o preso tem de voltar para a sociedade. A falta de métricas e a falta de informação [sobre o sistema prisional] são um bom indício de que, abrindo a porta, a gente fala: ‘Vá embora’. Deixando ele suscetível a ser recrutado pelo crime organizado e suscetível a voltar para a criminalidade por completa falta de opções.”