ROBERTO DA SILVA SÁ
No Brasil, em nome do povo, tem-se feito de tudo, mas nem tudo bem feito; e de tudo que se tem feito, em nome do povo, algo caminha para o irreversível: o empobrecimento do ensino superior. Pior para o povo. Pior para um povo.
Algumas reportagens e artigos de opinião pós-Enem 2013 instigaram-me outra vez a tratar da falência – já próxima – do ensino superior brasileiro.
Sem desconsiderar o aspecto político das condições degradantes das licenciaturas, identifico uma das centralidades dessa falência nos cursos de Letras. Em tais cursos, o âmago do problema está na absorção das atuais tendências pedagógicas – que já beiram a ditadura acadêmica – para o afrouxamento do ensino da norma culta da língua portuguesa.
Explico a afirmação acima por meio de um exemplo. Em Maringá/PR, há uma importante universidade pública: a Universidade Estadual de Maringá (UEM), onde tive a honra de concluir a graduação em Letras em meados dos anos 80.
Como sou do século passado, tive a obrigação de estudar a norma culta da “última flor do Lácio”. Ainda que longe de ser perfeccionista no uso dessa modalidade linguística, foi-me crucial ter aprendido estudá-la.
Detalhe: quando cursei Letras, a maioria de meus professores não tinha sequer o mestrado. Contudo, quase todos dominavam até o latim. Todos sabiam e ensinavam – sem medo nem preguiça – a gramática formal de nossa língua. Todos eram leitores de grandes obras e autores. Esse tipo de professor já faz falta nos cursos de Letras, cada vez mais cheio de gente que tem ojeriza pela leitura.
Mas por que citei a UEM se praticamente todos os cursos de Letras já afrouxaram o ensino da norma culta de nossa língua?
Por conta da matéria “Em faixas, projeto defende que desobedecer norma culta não é errado”, publicada pelo jornal A Gazeta de Maringá, em 01/11/2013.
No lead da matéria, lê-se: “Iniciativa de alunos e professores de Letras da UEM busca reconhecer a diversidade linguística e cultural da cidade...”
Na foto que ilustra a matéria, surge a visualização da ousadia; quiçá, a primeira do tipo no Brasil: duas senhoras seguram uma faixa num cruzamento da cidade. Na faixa, lê-se a seguinte previsão de um dos preconizadores do populismo linguístico nos cursos de Letras: “É bom ter cuidado na hora de condenar alguma forma linguística inovadora sugerida nos meios populares: ela já pode ser, hoje, a língua certa de amanhã”.
Quanta degradação acadêmica! Que incompreensão do papel social da própria academia! Que incompreensão do próprio estudo científico feito sobre os fenômenos linguísticos do cotidiano!
Aliás, verdade seja dita, detectar variedades linguísticas em um país culturalmente tão diverso, como o nosso, é uma das tarefas mais fáceis no meio acadêmico. Talvez seja essa facilidade a maior responsável pela confusão entre uma “descoberta científica” (a existência de variações linguísticas) e a imposição de novas posturas pedagógicas para o ensino da língua materna, independentemente do nível escolar.
Seja como for, o fato é que esse tipo de acadêmico, supondo combater preconceitos linguísticos, em termos concretos, nega ao povo um tipo de conhecimento: o rigoroso estudo da norma culta de sua língua, ou seja, um dos potenciais instrumentos de poder e ascensão social.
Assim, se tais acadêmicos queriam fazer algo contra o povo, mas em nome do povo, estão conseguindo. Por outro lado, não sei até onde todos eles conseguem dimensionar o real papel político/ideológico que estão fazendo contra o povo.
Como filho do povo, eis a minha dúvida.
*ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ - dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT