Em 2015, o Supremo Tribunal Federal determinou aos juízes e tribunais brasileiros que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento da pessoa privada de liberdade perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, diante da precária situação carcerária brasileira, com excesso de encarceramento sem o esperado resultado na diminuição da criminalidade.
Em verdade, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional, em 2015 a população prisional brasileira atingiu a impressionante marca de 698.6182 presos, colocando no Brasil o triste predicado de um dos países que mais prendem no mundo, não só em números absolutos, como também proporcionalmente pela quantidade de encarcerados a cada 100 mil habitantes.
Em números absolutos o Brasil já alçava a posição de 3º lugar do mundo de reclusos, já pela taxa de aprisionamento por 100 mil habitantes, o Brasil ocupava a 26ª posição mundial. Importante ressaltar que em 19903 o Brasil abrigava em torno de 90.000 pessoas privadas de liberdade, portanto a população prisional brasileira sofreu um absurdo aumento de 676% em 25 anos.
Apesar do superlativo incremento das prisões ao largo dos anos, não se verificou qualquer impacto nos índices de criminalidade e se detectou a proliferação dentro das penitenciárias das facções criminosas ou gangues que se aproveitaram do caos prisional e passaram a usar os locais de privação de liberdade como quartel general e suporte de recrutamento. Cito, a exemplo, o PCC - Primeiro Comando da Capital – que se tornou rapidamente uma das maiores organizações criminosas da América do Sul, conforme matérias jornalísticas do El Pais.
Nesse contexto, atendendo ao chamado do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, acompanhando o movimento nacional de desencarceramento, realizamos a primeira audiência de custódia na cidade de Cuiabá, Estado de Mato Grosso, no ano de 2015.
Até 31/12/2019, 15.044 presos foram apresentados a um Juiz Criminal de Cuiabá, com 58% de soltura imediata, 12,5% de notificação de casos de tortura e 4.276 encaminhamentos assistenciais – diga-se tratamento de drogas, emprego, estudo, etc.
Detectamos que houve um relevante avanço civilizatório e um natural nivelamento do ordenamento jurídico brasileiro aos Tratados Internacionais, como também, após mais de quinze mil audiências de custódia realizadas em Cuiabá, detectamos empiricamente várias situações, dentre elas cito:
a) O contado direto e imediato do juiz com a pessoa presa aumentou o nível de cientificidade da autoridade judiciária para decidir a partir do material oral apresentado ao juiz.
b) Houve um incremento e maior tutela na proteção da integridade física e psíquica da pessoa presa, com a prevenção de eventuais excessos, tais como tortura, maus tratos, tratamento desumano ou cruel, bem como outras violações de direitos humanos (uso de algemas, recolhimento em quartel militar de presos civis, presos de gênero diferente na mesma cela, recolhimento em viaturas ou contêineres, etc).
c) A interrupção das carreiras criminosas e diminuição do desvio secundário (outsiders), na medida em que 58% dos presos em flagrante não
ingressaram um dia sequer em penitenciária ou cadeia – com soltura imediata, logo 8.726 6 pessoas ficaram livres dos efeitos deletérios sociais e psicológicos da estigmatização e do recrutamento pelas facções criminosas.
Com fundamento na experiência e nos números oficiais comprova-se o sucesso do projeto audiência de custódia no Brasil e, em particular, Cuiabá. Os baixos índices de reingresso (somente 16% dos presos em flagrante retornaram ao sistema) e, em revelação contrária ao senso comum, comprovou-se que a preservação dos direitos humanos e respeito aos tratados internacionais são valores compatíveis e conciliáveis com a segurança pública.
Felizmente, não existe ou não se aplica o famoso paradoxo entre a liberdade e segurança defendido por Zygmunt Bauman, no que diz respeito às audiências de custódia em relação à segurança pública, porque a partir da implantação das audiências de custódia houve uma maior proteção às liberdades individuais, especial prevenção à tortura e proteção da dignidade humana e, ao mesmo tempo, a sociedade experimentou uma importante diminuição dos índices de criminalidade.
A viabilidade e compatibilidade da rede de proteção de direitos humanos, em especial a custódia, com o sistema de segurança pública, estão embasadas no fato de que após a implantação das custódias não houve aumento da criminalidade, muito pelo contrário, ocorreu minoração dos índices dos principais delitos em Cuiabá e no Brasil.
Tomemos a exemplo os crimes de morte violenta intencional e roubo de veículos, os quais incomodam sobremaneira a sociedade, oportunidade em que a questão fica bastante elucidativa.
As audiências de custódia iniciaram-se em Cuiabá em 2015 e, até 2019, foram 15.044 presos apresentados a um Juiz de Direito. Conforme pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicada em seus Anuários, em 2014 a cidade de Cuiabá tinha a taxa de 45,5 crimes com mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes, compreendidos homicídios, latrocínios e lesões seguidas de morte.
A partir de 2015, ano da implantação do projeto de custódia, os números começaram a baixar, chegando em 2018 a um patamar menor de 20,6 mortes por 100 mil habitantes, com uma diminuição de 54,5% conforme abaixo10:
Mortes Violentas Intencionais em Cuiabá: 2014 (45,5), 2015 (43,8), 2016 (37,2), 2017 (25,9) e 2018 (20,6).
Com relação aos crimes de morte violenta, os dados do IPEA estão no mesmo sentido, ou seja, uma diminuição dos números pela metade após a implantação do projeto audiência de custódia.
Após a implementação das audiências de custódia em Cuiabá também visualizamos um declínio importante nos crimes de roubo e furto de veículos num patamar considerável de aproximadamente 35,4%, observando os dados abaixo nos Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública:
Roubo e Furto de veículo em Cuiabá: 2014 (719,1), 2015 (682,1), 2016 (661), 2017 (527,3) e 2018 (464,5).
Evidenciamos também nos relatórios oficiais do TJMT que as prisões em flagrante também diminuíram na cidade de Cuiabá após o ano da implantação do projeto de audiências de custódia, impactando no número audiências de custódia realizadas. A média/mês de audiências de custódia realizadas em Cuiabá diminuiu 20,4%, de acordo com os dados abaixo citados:
Média por mês de Audiências de Custódia realizadas na cidade de Cuiabá: 2014 (-), 2015 (-), 2016 (335), 2017 (313), 2018 (283) e 2019 (266).
Como visto, o impacto das audiências de custódia na segurança pública foi extremamente positivo. A conclusão é que a realização das audiências de custódia é compatível e conciliável com a segurança pública e, relevante ressaltar, que existe uma tendência de que as audiências de custódia possam contribuir com a redução da taxa de criminalidade, necessitando maiores pesquisas a respeito.
Essa relevante e atual queda nos índices de criminalidade deve-se principalmente à atuação dos órgãos persecutórios, com a devida parametrização constitucional do Poder Judiciário, cuja função precípua dos magistrados é de garante a Constituição e Tratados Internacionais, salientando que o Poder Judiciário não é órgão de segurança pública e sim estrutura fundamental para caracterização de uma República Democrática, que nasce das três forças reunidas: libertas do povo (liberdade do povo), auctoritas do senado (autoridade do senado) e potestas dos magistrados (poder dos magistrados).
Para redução das taxas de criminalidade destaco a atuação relevante dos policiais militares, policiais civis e promotores de justiça, cujo árduo trabalho em geral tem sido satisfatório no combate à delinquência, sobretudo na localização e apreensão de ativos financeiros das organizações criminosas de corrupção (colarinho branco) e do Comando Vermelho, o que tem impedido a progressão do crime em Cuiabá.
Discordo do posicionamento do pesquisador da UFMT Naldson Ramos de que um dos motivos da diminuição da criminalidade foi em decorrência de domínio imposto pelo Comando Vermelho.
Primeiro porque não existe pesquisa de diminuição da criminalidade por fator regulatório de facções criminosas, até porque só existem cifras negras nessa seara, além do que grande parte dos homicídios são atribuídos aos problemas no campo, crimes passionais e brigas por pessoas alcoolizadas, drogadas ou de ímpeto, não necessariamente por desacordo, ciclo de traficantes ou briga de facção. Ademais, existem outras facções atuantes em Mato Grosso como o PCC em Várzea Grande e facções “bandeiras brancas” na fronteira da Bolívia, logo não se pode falar em preponderância de uma facção apenas.
Ademais, atribuir queda de criminalidade ao predomínio de facções fica cada vez menos verdadeira quando se trata de crimes de roubo e furto, pois não faz sentido que elas intervenham para controlar todos os crimes patrimoniais, até porque a maioria dos roubos de carros em Cuiabá é controlada pelo próprio Comando Vermelho, até o ano passado, pela quadrilha Marreta-Progresso-157, bem como não se ouve falar em “salve” de facção contra roubo de celulares ou residência na maioria dos bairros em Cuiabá, em especial nos bairros nobres.
Assim, atribuir queda de criminalidade, ainda que em parte, às facções, é um desprestígio para os órgãos estatais e uma ofensa ao brilhante trabalho da polícia, que detém o controle dessas facções.
De outro ponto, impõe considerar o ainda existente excesso de encarceramento, sobretudo de prisões provisórias, fazendo uma crítica respeitosa aos
operadores do direito, em especial aos magistrados criminais pela ainda baixa utilização das medidas cautelares desencarceradoras e restaurativas, mesmo com as audiências de custódia e as alternativas penais terem sido inseridas na legislação interna do Brasil.
Faço uma singela comparação entre o médico e o juiz criminal. Temos que o magistrado criminal deve ser sensível como um médico, com uma vida fadigosa dedicada inteiramente aos vulneráveis e miseráveis. O médico e o juiz criminal devem empregar os melhores meios e processos para diagnosticar o problema e aplicar o melhor tratamento ao caso.
Um como o outro devem utilizar-se de mecanismos para curar a pessoa enferma e tratar a sociedade e os vulneráveis da melhor forma. Da mesma maneira que um médico não pode tratar todas as enfermidades apenas e tão somente com um tipo de comprimido, ao Juiz não é dado salvaguardar a sociedade apenas prendendo pessoas, para agradar a opinião pública, a qual vê na prisão a panaceia de todos os males.
Só assim os doentes serão tratados com cuidado e as pessoas em conflito com a lei julgadas com justiça.
Marcos Faleiros da Silva é juiz de direito do Juízo Militar