FERNANDO SOUBHIA
Quando parei para redigir um texto sobre a relevância da Defensoria Pública, minha mente logo foi para construções acadêmicas, ondas renovatórias de acesso à justiça, dimensões dos direitos fundamentais e outras construções teóricas elegantes, porém assépticas. Mas não. Não vou usar da lógica para falar de algo que deve ser vivido para ser compreendido. Vou falar do que vi ao longo desses anos como Defensor Público no Estado de Mato Grosso. Eu vi uma jovem de outro Estado se dedicar de corpo e alma a um dos grupos sociais mais vulneráveis e invisibilizados de todos.
Vi como sem protocolar uma petição sequer, seu trabalho transformou catadores de lixo em catadores de materiais recicláveis, conferindo-lhes forma jurídica, identidade, respeitabilidade e, acima de tudo, dignidade. Presenciei, mais de uma vez, membros desse grupo tributarem a ela, pessoalmente, a revolução positiva nas suas vidas e nas de suas famílias e vi como, mesmo diante de uma enxurrada de louros, sua espontaneidade permaneceu incorruptível.
Eu vi uma prata da casa, cuiabana de chapa e cruz, já reconhecida por sua dedicação impecável aos processos, encontrar nas ruas o seu verdadeiro chamado. Andando com ela pelas vielas do centro de Cuiabá no meio da noite, vi as pessoas em situação de rua chamando-a pelo nome para agradecer o serviço prestado em outras oportunidades. Nessa mesma noite vi homens e mulheres negras, magros, sujos, vulnerabilizados ao extremo, serem chicoteados com fios de telefone por agentes de segurança pública no Beco do Candeeiro e vi quando ela, cara a cara com o perigo do sistema penal subterrâneo, colocou-se como um verdadeiro dique de contenção para exigir a cessação da violência e uma resposta, mesmo sob o risco de se tornar alvo de represálias.
Vi uma colega fazer com que o dia tivesse 48 horas e o ano 730 dias para dedicar todas as suas energias no combate à violência doméstica e de gênero, colocando um rosto ao termo práxis ao unir teoria e prática e dar encaminhamento concreto à cada posicionamento tomado, seja em movimentações políticas, jurídicas ou acadêmicas. Vi ela colocando em prática suas crenças e fazendo atendimentos onde quer que seja, de estações de ônibus a bancos de praça. Vi que mais do que qualquer letreiro em prédios, é em sua face que o termo Defensoria Pública se materializa para muitas pessoas.
Vi um colega fazendo atendimento de pessoas privadas de liberdade dentro das celas da maior penitenciária do Mato Grosso e vi quando os Policiais Penais o tentaram impedir de registrar as marcas da violência institucional. Vi quando ele comeu da mesma comida e bebeu da mesma água dos presos, mesmo contrariando a recomendação da lógica mais comezinha. Vi quando, no final da inspeção, um preso que já o conhecia lhe pediu um abraço e desculpas por ter voltado para o crime mesmo depois de todos os esforços que o colega tinha envidado para tirá-lo da cadeia.
Vi colegas recém-empossados, em sua maioria vindos de fora, acostumados com climas mais amenos, fazendo atendimentos em mutirão sob o inclemente sol de Cuiabá. Vi o suor escorrendo em seus rostos enquanto ouviam pacientemente e anotavam as agruras dos defensorados esquecido pelo Estado, aguardando ansiosamente a volta do ventilador que virara para o outro lado em seu costumeiro movimento semi-rotatório. Vi o brilho nos olhos de cada um que, mesmo no desconforto físico, pareciam realizados espiritualmente pela conquista da aprovação em concurso e por saber que doravante integram uma instituição mais preocupada em diminuir o sofrimento concreto das pessoas do que vociferar valores genéricos e populistas.
Vi colega enfrentando figurão da classe política para responsabilizá-lo pelas ofensas proferidas contra aqueles que amam de uma forma diferente que a dele. Vi colega já à beira da aposentadoria se preocupar com aqueles que acabam de nascer e formular projetos para uma Defensoria no berçário. Vi colegas percorrerem centenas de quilômetros para atendimentos em aldeias indígenas e das populações ribeirinhas.
Vi colegas banhados em espírito associativo investindo tempo e recursos pessoais para distribuir cestas básicas e álcool em gel nos bairros pobres da capital durante a pandemia de COVID-19, arriscando a própria saúde para garantir que aquelas pessoas tivessem um pouco mais de proteção contra o vírus que parou o mundo. Vi colega comprando remédios para uma mãe desesperada porque a petição inicial não seria analisada em tempo.
Vi colegas dedicarem anos de suas vidas à defesa intransigente dos direitos dos criminalizados, mesmo sem receber o mesmo reconhecimento que aqueles que atuam em áreas menos polêmicas, nunca se envergonhando de lutar pelo que é justo. Vi colega continuar por anos na luta antes de se aposentar, mesmo depois que os sentidos tentaram impedi-lo, inspirando-me profundamente, mesmo sem me conhecer.
Vi muito. E olha que estou aqui há pouco tempo. Vi uma instituição nascida de um sonho civilizatório se tornar um marco de proteção dos direitos fundamentais. Vi essa instituição crescer sem perder sua identidade. Mas, mais do que uma instituição, vi, acima de tudo, seres humanos se importando com outros seres humanos. E, no final das contas, é daí que vem a indispensabilidade da Defensoria Pública, dos Defensores e das Defensoras Públicas: de se importar com a dor daqueles que não importam para os importantes e fazer de tudo para remediá-la.